segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Vale a pena armazenar o sangue do cordão umbilical?

Se você está fazendo o pré-natal numa clínica particular (mesmo que seja pelo plano de saúde), se já visitou uma maternidade privada ou se é leitora (mesmo que eventual) de revistas como Caras e Contigo, é impossível que não tenha ouvido falar no armazenamento das células-tronco do sangue do cordão umbilical. A julgar pelas celebridades das revistas e pelos panfletos na sala de espera do seu obstetra, a decisão de coletar o sangue do cordão do seu bebê é uma decisão simples, que só depende de grana. Já que, como afirma a Cryopraxis, há “ausência de risco para o doador, uma vez que o método de coleta não é invasivo”, por que não investir no armazenamento desse sangue que, supostamente, viraria “lixo biológico”? Afinal, “há coisas na vida que não tem preço – segurança é uma delas” sugere a Crio Gênesis, enquanto a Cord Vida garante que essa escolha representa “Proteção para o seu bebê, hoje e no futuro”.
Hm… será? Será que coletar e armazenar o sangue do cordão umbilical vale a pena mesmo?
Profissionais coletam o sangue do cordão umbilical de um bebê segundos após seu nascimento.
Profissionais coletam o sangue do cordão umbilical de um bebê segundos após seu nascimento.
Decidi me informar melhor e gostaria de compartilhar com vocês os meus achados e levantar alguns pontos para reflexão.

1. Importantes órgãos de saúde não recomendam o armazenamento de células-tronco em bancos privados.
No Brasil, o Ministério da Saúde, o INCA e a Anvisa se posicionaram contra o armazenamento de sangue de cordão umbilical em bancos privados com base em estudos e estatísticas que apontam as numerosas limitações do uso real desse material. A Academia Americana da Pediatria e o Colégio Americano de Ginecologistas Obstetras também são reticentes à prática. Vou resumir as principais objeções levantadas por esses órgãos:
  • A probabilidade real de se usar as células-tronco do cordão é baixíssima: as estimativas indicam entre 0,005% e 0,05%. No Brasil, apenas 3 das 45.661 unidades de sangue de cordão armazenadas em bancos privados no período de 2003 a 2010 foram utilizadas. Ou seja, somente 0,007%.
  • As quantidades coletadas geralmente não são o suficiente para tratar muitas condições – especialmente em adultos. Para você ter uma ideia, segundo Mary Hanet, a gerente de um dos maiores bancos públicos dos EUA, 75% do sangue coletado para bancos públicos é descartado por não conter um número mínimo de células-tronco. Ou seja, há uma chance considerável de você pagar para armazenar um material completamente inviável.
  • Em muitas das doenças passíveis de serem tratadas com células-tronco na infância, não é indicado usar material autólogo (do próprio paciente), porque aquelas células também carregam os marcadores genéticos da doença. É o caso das leucemias, por exemplo, e de outras doenças genéticas.
  • Como os bancos privados não são regulados, há uma chance do armazenamento não estar sendo feito adequadamente.
  • Ainda há poucos estudos e relatos de caso na literatura médica para comprovar o real benefício de tratamentos com células-tronco de sangue de cordão umbilical autólogas.

2. O sangue do cordão pertence ao bebê – privá-lo desse sangue pode ter consequências adversas.
Dizem que o sangue do cordão, se não for coletado, vai para o lixo junto com a placenta. E isso pode até ser verdade em muitos casos, mas é importante saber que  não precisa acontecer no seu caso. Deixar passar alguns minutos antes de cortar o cordão – uma prática conhecida como clampeamento tardio de cordão umbilical – já faz parte de um protocolo humanizado (e baseado em evidências) de parto e nascimento – é, inclusive, uma recomendação da OMS. Consiste em esperar o cordão parar de pulsar, para que o sangue residual do cordão e da placenta retorne para o bebê. Afinal, aquele sangue ali pertence ao bebê, não é mesmo? Na natureza, num parto 100% fisiológico, ele voltaria ao bebê. Estudosmostram que bebês que receberam esse sangue na época do nascimento têm menos anemia do que bebês nascidos com os protocolos antigos de clampeamento (ou seja, cujo cordão foi cortado imediatamente). Eileen Hutton, que publicou uma revisão sistemática sobre o tema, diz o seguinte sobre o clampeamento precoce do cordão (ou seja, o método convencional praticado pela maioria dos médicos): “As implicações são imensas. Trata-se de privar os bebês de 30 a 40 por cento do próprio sangue no nascimento – e tudo isso porque aprendemos uma prática que é nociva”.
Esse vídeo maravilhoso ilustra a quantidade de sangue que o bebê deixa de receber quando o cordão é cortado imediatamente. Não é preciso entender inglês para captar a moral da história.




Um último ponto sobre as consequências imediatas para o bebê: o procedimento em si, como você pode ver na imagem que ilustra esse post, não me parece um jeito muito agradável de ser recepcionado a este mundo. Eu, se fosse um recém-nascido, preferiria estar entre os seios quentinhos da minha mãe.

3. O marketing das empresas de armazenamento é predatório e antiético.
Um excelente debate entre médicos publicado no jornal de acesso aberto PLOS Medicine levanta uma questão pertinente:  bancos de armazenamento privados exploram a vulnerabilidade emocional dos pais visando o próprio lucro? Visto que: A) muitos candidatos a clientes desconhecem a informação resumida no ponto 1 (sobre a baixíssima probabilidade de, primeiro, precisarem desse material e, segundo e talvez mais importante, conseguirem fazê-lo de forma eficaz) e, sobretudo, B) que a decisão lhes é colocada como uma questão de “seguro de saúde” para um filho que ainda não nasceu – e sobre o qual já se colocou muito desejo, amor, preocupação – então eu diria que C), sim, é uma atitude covarde e cruel das empresas tentar vender-lhes uma garantia nada garantida, uma ilusão, de que através desse “investimento” eles estejam adquirindo um salva-guarda contra seus piores pesadelos. Como se não bastasse essa ação predatória sobre os medos inevitáveis dos pais, essas empresas também bonificam os médicos que “indicam” o serviço. Fiquei sabendo, por uma fonte segura, que as empresas oferecem um “agrado” (em dinheiro, que fique claro) aos obstetras das pacientes que contratam o serviço e que esse “agrado” pode até ultrapassar o valor que o médico recebeu do plano de saúde pelo procedimento feito (parto ou cesárea). É a dupla falta de ética nesse caso, porque nem o obstetra vira uma fonte confiável de informação, já que ele está se beneficiando do procedimento (sem revelar isso aos clientes).
É lógico que, sabendo de tudo isso, um casal pode ainda chegar à conclusão de que dormiria melhor à noite pagando os tais R$2.000 + taxas anuais de R$500. Mas sempre é bom examinar os medos e as crenças irracionais antes de gastar a grana e ser vítima desse marketing desleal, até porque [veja abaixo]…


4. …há maneiras mais eficazes – e mais certeiras – de zelar pela saúde do seu filho.
Ao invés de cair na neurose promovida pelo marketing do medo, fixando-se num cenário hipotético nada provável (doença rara, tecnologias de ponta, cura milagrosa!), que talvez nem seja tratável com o material disponível (insuficiente, mal armazenado, comprometido),  que tal colocar suas energias em medidas efetivas para melhorar a saúde do seu filho? Quer reduzir as chances de que ele tenha um câncer raro, diabetes, doenças autoimunes? Foque suas energias (e recursos financeiros) na amamentação e, em seguida, na alimentação saudável, priorizando comidas caseiras, feitas com ingredientes naturais (e, se possível, livres de agrotóxicos, como os orgânicos). Estabeleça em sua família um estilo de vida ativo, com tempo na natureza, diversão, esporte, ar puro e endorfinas naturais. Promova um ambiente com um mínimo de químicas e toxinas  – o que não significa estéril, pelo contrário, mas evitando expor sua família a substâncias cancerígenas ou disruptores endócrinos. Quer fazer mais? Então contrate um pediatra que faça um trabalho cauteloso, focado na saúde a longo prazo e não só nos males imediatos, limitando assim medicações, hospitalizações e cirurgias. Trate seu bebê, e depois a sua criança, o seu adolescente, com carinho e respeito, zelando pelo seu bem estar emocional, pois uma mente sã é uma condição sine qua non para um corpo são. Essas atitudes pró-ativas, concretas, fundamentadas em evidências, terão um impacto muito maior  a longo prazo na saúde e no bem estar do seu filho.


5. Você aposta na ciência?
Muitos pais que consideram coletar e armazenar o sangue do cordão do filho têm fé nas novas tecnologias e, por isso, optam por contratar esse serviço mesmo sabendo que, no momento atual, as aplicações são restritas. Acreditam que, no futuro, com novas pesquisas e descobertas, os usos se tornarão mais abrangentes e, assim, a probabilidade de se utilizar o material tão caramente guardado aumentará. Agora, se você aposta na ciência e na tecnologia, não seria razoável apostar na possibilidade de se descobrirem outros meios de curar e/ou tratar doenças sem privar o bebê de 30% do sangue do seu corpo ao nascer e sem expô-lo, desnecessariamente, ao risco de anemia por conta do clampeamento precoce do cordão? Sei lá, não sou cientista, mas não acho que essa hipótese seja tão improvável assim.
Já disse tudo o que me propus a dizer. Peço desculpa pelo texto enorme e por não ter tocado no assunto do armazenamento em bancos públicos, mas acho que o impulso por trás dessa opção não é o medo e a vulnerabilidade que fazem um casal considerar o armazenamento em  banco privado. E a minha birra é com isso. Porque é impossível alguém tomar uma decisão consciente sem ter informação real sobre o que está prestes a contratar: informação sobre o serviço, as possíveis consequências, as motivações que o levam a considerá-lo e as alternativas. Espero que eu tenha contribuído para que você faça uma decisão mais consciente sobre a contratação (ou não) desse serviço.
Texto retirado do site:

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