sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Pontos de vista antropológicos relativos à febre


   Se quisermos entender a febre, teremos de estuda-la em relação com outras formas de expressão do calor. Nestas formas, o calor se revela não só como algo que pode ser "medido" com o termômetro, mas também como expressão de atividade anímica e espiritual: sentimos um "calor" ao ver uma pessoa querida. Do mesmo modo, podemos sentir o calor inundar nosso corpo até a ponta dos pés ao relampejar de uma ideia ou quando do entusiasmo por um ideal. Também a raiva e a vergonha fazem com que o calor suba à face, deixando-a rubra, o que nem sempre nos agrada. Em situação de susto, de medo e mesmo num ambiente de ódio, inveja, insatisfação e preocupação, a circulação sanguínea literalmente "estanca" em nossas veias. Sob certas circunstâncias, ficamos frios e pálidos. Falamos de "atitude gélida", "frieza reservada" e "calor humano" com o qual alguém nos vem ao encontro quando está interessado e aberto.
 
  Nossa capacidade de desempenho, tanto física como mental, depende de uma temperatura ideal de aproximadamente 37 graus Celsius, mantida pela capacidade de regulação térmica do corpo. Pela transpiração eliminamos o calor excessivo e, do mesmo modo, ao sentir frio procuramos aumentar a temperatura do nosso corpo com tremores musculares e batendo os dentes. Nem transpirando nem tremendo de frio conseguimos pensar e agir concentradamente.

   Todos os processos da Natureza também são impregnados por um certo grau de calor. Este grau decide se a matéria será, por exemplo, líquida, sólida ou gasosa. Somente o calor permeia todos os reinos da existência, podendo provocar a passagem de um estado a outro. O calor que, no organismo humano, é regulado por intermédio da circulação sanguínea tem participação decisiva nos processos metabólicos. É da temperatura apropriada que depende o fato de algo "continuar em circulação" , "ser depositado", "aerizado" ou "queimado".

   Desse ponto de vista, o calor não é apenas uma expressão de nossas atividades anímicas e físicas, mas também seu agente. Emoções podem causar uma aceleração da circulação sanguínea. Ao contrário, o calor gerado pelos processos metabólicos pode aumentar a capacidade de desempenho. Podemos designar o conjunto de processos térmicos, tanto físicos quanto anímicos, por "organismos térmicos", por haver entre eles uma interação e interligação como no organismo vivo. A natureza unitária do calor, vivenciada anímica ou fisicamente pelo eu, faz com que este possa sentir-se, em seu calor, como um ser completo em si. Calor físico, anímico e espiritual fazem-no atuar nessas três regiões. Por este motivo podemos dizer também que o organismo térmico é o suporte para o eu humano e sua natureza (Rudolf Steiner). Como toda e qualquer moléstia está envolvida com uma alteração do organismo térmico, o eu é sempre diretamente atingido e "engajado" no processo.

   Febre é uma modificação, sob forma de crise, da constituição térmica, podendo ser provocada pelas mais diversas causas. No caso de crianças, a causa pode ser uma festa de aniversário, uma viagem demorada, uma mudança de tempo, um resfriado mal-curado ou um dentinho por nascer. Todos esses acontecimentos podem afetar o organismo e também ensejar a instalação de focos de doenças. Há então tipos bem característicos: a criança que "nunca" tem febre, a criança cuja febre se eleva gradativamente, a criança com ataques curtos e repentinos de febre muito alta. Há famílias inteiras cujos filhos já estão "de molho" na cama enquanto os filhos da vizinha ainda brincam alegremente nas poças de água que a chuva deixou. Então acontece uma inversão de papéis, e aquele que levou mais tempo para adoecer poderá ser acometido mais seriamente pela infecção. No caso de adultos, existem ainda outras características: um indivíduo que trabalha duramente, porém em bom ritmo e gostando do seu trabalho, talvez esteja menos propenso a gripes do que outro que necessita frequentemente "espairecer". Será que o primeiro deles pode movimentar mais atividade térmica permeada pelo eu? Poderia a febre ser também uma tentativa de intervenção do anímico-espiritual para fortalecer temporariamente o corpo físico ou criar um substituto para uma atividade anímica precária?

   O exemplo a seguir é bem elucidativo: Um recém nascido é a "cara do avô". Tempos depois, talvez se constate que "agora está muito parecido com mãe". E após uma doença acompanhada de muita febre, os pais descobrem em seu filho um novo traço, que não tem similar na família. Ficam felizes ao ver mais claramente, agora, a personalidade do seu filho. A febre auxilia o eu a tornar o seu corpo físico mais "conveniente" a que ele possa expressar-se por seu intermédio. Quem considera esta relação evidente acompanha os estados febris de seus filhos com interesse totalmente diverso, já não os considerando uma infelicidade. Parecem-lhe muito mais uma chance, para a vontade da criança, de individualizar seu corpo físico a partir de seu próprio calor, representante do eu. No aspecto puramente exterior, isto se revela pela rápida recuperação do peso que toda criança perde durante o período da febre. Tem-se a impressão que ela se desfez de uma parte do corpo físico herdado, edificando-o novamente sob o comando de seu próprio organismo térmico. Tivemos a comprovação disso inúmeras vezes, no consultório médico. Vimos como uma gripe com febre alta, uma pneumonia bem curada ou até sarampo serviram de partida para uma fase nova e estável no desenvolvimento da criança. 

   Este efeito da febre no corpo físico é perfeitamente comparável ao de um bom método pedagógico no âmbito anímico: a criança aprendeu algo por esforço próprio. Antipedagógico seria, por exemplo, dizer constantemente: "Faça isso, faça aquilo, não pode, não mexa". Infelizmente, muitos pais, baseando-se em conselhos médicos, tomam atitudes, nos casos de febre, que correspondem a essas atitudes antipedagógicas: mal a temperatura se eleva acima de 38,5 graus Celsius é aplicado um antitérmico na criança. E sendo constatado um foco infeccioso, imediatamente é acrescentado um antibiótico. Em tal caso, não resta ao organismo nenhum espaço, nenhuma possibilidade de lidar po si próprio com a doença. Além disso, a tal organismo faltará, em situação verdadeiramente crítica. a "elasticidade", o "treino" para desincumbir-se de tarefas bem mais sérias do que infecções febris.

   Sabe-se que existem reações dramaticamente exageradas no decurso de algumas doenças, como s convulsões febris descritas, e também que pode haver processos patológicos causadores de danos no desenvolvimento. A verdadeira preocupação na medicina é fazer frente a esses processos. No entanto, como vimos, não nos devemos enganar quanto ao risco efetivo da simples convulsão febril: de um total de cem crianças, apenas cinco tiveram uma convulsão febril durante a infância. Essas mesmas cem crianças, no entanto, tiveram em sua totalidade cerca de 500 infecções acompanhadas de febre alta. Isto equivale a dizer que uma moléstia precisaria ser tratada quimicamente cerca de 500 vezes para, profilaticamente, evitar possíveis cinco convulsões febris. Vimos, por fim, no primeiro exemplo de convulsão febril, que frequentemente a febre pode só ser constatada após a convulsão. Em tais casos, já seria tarde demais para a utilização do antitérmico.

   Quem, ao tratar de uma doença, se orientar pela situação evolutiva da criança, tanto se oporá ao uso indiscriminado de medicamentos antitérmicos como não será radicalmente contra sua aplicação. Pois qualquer tratamento da febre que não avalie adequadamente a atividade própria do organismo infantil trará prejuízos para seu desenvolvimento. Do mesmo modo como uma criança "precisa" da elevação de temperatura para intensificar sua atividade metabólica, podendo assim "trabalhar" em sua constituição físico-orgânica, no caso de outra é preciso evitar que ela se debilite muito por uma reação febril exagerada. 

   É gratificante perceber quando no seio de uma família ressurge a confiança nas foças de uma criança que, após ter sofrido uma primeira convulsão febril, na próxima infecção supera uma febre de até 40 graus Celsius sem convulsão. Ela "aprendeu" a lidar com a febre. Esperamos que tal colaboração criteriosa entre pais e médicos, orientada para a criança individual, venha a propagar-se cada vez mais.

Capítulo Doenças da Infância e seus Sintomas do Livro Consultório Pediátrico - Um Conselheiro Médico-Pedagógico

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